Mais um, Chico​

Chico
8 min readMar 10, 2023

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  • Parte 01 – O fim e o começo

O gosto do chumbo na boca ou o gelado circunferencial na testa. O cheiro da pólvora parece reconfortante; desistir de tudo não parece uma opção ruim. Respiro sem ter certeza se ainda estou vivo. Sentado aqui neste sanitário, o cheiro melancólico das enfermarias entra pelas janelas, disfarçando o cheiro do cadáver aos meus pés. Ainda ofegante da luta corporal que acabara de ter, uma única dúvida percorre meus axônios: como cheguei até aqui?

Meu nome é Francisco Leão. Chico para os nobres.

E essa é uma história de como eu morri mesmo sem querer morrer.

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Era noite na cidade de São Paulo e, enquanto ela dormia, tentávamos realizar pequenos milagres. Sou apenas mais um médico, especialista naquilo que a maioria não quer ser: especialista em emergência. Viciado em adrenalina, sangue e dor. Quem lê assim pode pensar que sou algum sociopata de jaleco branco, mas não costumo usar jaleco branco.

Já me encontrava desde o nascer do sol nesse nosocômio, percorrendo diagnósticos improváveis e atendendo pacientes de diversas gravidades. O nosso sistema público é um privilégio, mas, em boa parte do tempo, o sistema é usado como um laboratório. Terapias novas são testadas aqui, acadêmicos tentando aprender medicina em corpos ainda quentes; jovens médicos tentando ganhar experiência às custas de erros, muitas vezes mascarados pela própria ignorância.

Todo médico tem uma certa loucura dentro de si, seja pela forma como lida com a morte ou pela forma como trata as dores alheias. A cara de prazer quando a morfina sai da seringa e entra na veia, tornando uma dor lancinante em algo aceitável, ou o olhar do paciente no exato momento em que o coração para de bater. No teatro da vida, estamos na primeira fila.

Sempre tive vícios, alguns mais deletérios que outros. A morfina, por exemplo, me ajudou a entender melhor o ser humano, mas as doses pequenas foram apenas no início. Lembro-me da primeira vez, agulha de insulina, perto do umbigo, 8 miligramas. Encontrar Jesus foi o que me salvou. Toda quarta tomamos cerveja depois do plantão; meu grande amigo e um ótimo psiquiatra, especialista em abstinência de opióides. Jesus não frequenta a igreja. Foi molestado por um padre escroto quando era pequeno. Duas tentativas de suicídio, era só ódio por dentro até resolver estudar medicina, e lá se foi uma vida inteira ajudando vítimas de violência sexual e dependência química.

A emergência me dá brio: pessoas nos piores dias de suas vidas. Ninguém me escolhe para ser a última esperança; eu sou o que tem. Do recém-nascido ao centenário implorando por um pouco de compaixão e não um tubo na garganta. Aqui se perde mais do que se ganha, e aceitar isso é doloroso, mas é preciso. Afinal, não sou cirurgião.

Janeiro sempre é foda. Foda no sentido ruim; calor e um recomeço que nunca é um recomeço. O mundo estava mais estranho que o normal. O caos se instalou e o que era de se crucificar se tornou banal. Trabalho em um hospital universitário na capital paulista. Referência em trauma e todas outras complexidades que ninguém consegue resolver. E tô nessa há 10 anos, plantão noturno, sábado à noite desde que peguei meu diploma.

Alguns me conhecem como Dr. Biscoito, afinal não é bolacha, né.

“Dr. Biscoito, avaliação na vermelha e você engordou, hein.”

Intimidade é foda.

Feminino, 17 anos, tentativa de suicídio, tomou o frasco de Rivotril® da mãe há 20 minutos. O olhar do suicida tem características clássicas. Desistir de viver não é uma decisão fácil, mas compreensível. Tratar o efeito da medicação foi fácil; o difícil foi falar com a família.

Um hospital universitário no Brasil quer dizer que os residentes tocam o serviço, uma mão de obra barata em troca da maior pérola da medicina: o conhecimento. “Que lindo, Chico”, dizem as vozes na minha cabeça. Na maior parte das vezes, o residente é explorado em troca de um “salário” e aprende a ter maturidade na base do “tomara que não dê merda”.

“Olá, meu nome é Dr. Henrique, tudo bem?”, disse o residente atendendo aquela menina.

Porra, Henrique, óbvio que ela não está bem, pensei comigo mesmo e segui tentando buscar mais informações enquanto a dose do remédio não fazia efeito.

No canto, sozinha, encontro sua mãe aos prantos na sala de espera.

“Olá, meu nome é Francisco, sou o responsável pela sala vermelha.”

Tentei escolher com cautela minhas palavras. Escutei mais do que falei. Terminando minhas perguntas, principalmente para estimar a dose ingerida e se por acaso havia a possibilidade de outra medicação associada.

Já me despedindo, ela faz sua única pergunta, com angústia em cada sílaba.

“Dr. Francisco, ela vai ficar bem?”, se ajoelhando após o ponto de interrogação.

“Vou fazer de tudo por ela.” Uma resposta genérica, longe de ser a melhor, mas foi honesta.

Enquanto me encaminhava à sala, o barulho das sirenes que pareciam distantes foi se aproximando. Óbvio que ia dar merda.

Paciente de 18 anos, trazido pela polícia, ferimento por arma de fogo no peito.

“Dr., esse aí é bandido. Tentou assaltar o mercado da principal. Teve o culhão de atirar na gente, porra… e acertou a perna do meu parceiro.”

O jovem, preto, ainda com sinais de vida disse:

“Dr., me salva. Só penso no Bruno. Bruno é meu filho.”

Palavras breves, até seu coração parar de bater.

“Enfermeira, kit de toracotomia agora e aciona a equipe cirúrgica!”

Então, dei duas respiradas profundas e, com uma incisão única inframamilar esquerda que ia do esterno até a linha axilar, o bisturi abriu uma janela para o coração. Ao abraçar o coração com minhas mãos, percebi uma lesão cardíaca pelo projétil. Bastou pôr meu dedo no buraco, algumas massagens e algumas bolsas de sangue para o coração voltar a bater.

A equipe da cirurgia chega.

Não gosto de apresentar personagens, mas tem um filho da puta que vocês têm que conhecer.

O Dr. Mourão, cirurgião geral, 50 anos de serviço público. Ainda prescreve dolantina para dor leve.

“Mas que caralho! Por que você abriu essa porra? Já não falei que bisturi não é coisa de clínico?”, disse meu simpático amigo. “Me faz o favor de levar esse paciente pro bloco cirúrgico.”

Passada a troca de palavras amistosas, o paciente entra em cirurgia.

E essa foi a primeira hora do último plantão de sábado à noite da minha vida. Calma, essa história é mais longa; eu só estava mudando para domingo.

Nunca fiz questão de ser médico. Mas, as coisas foram acontecendo e aqui estou eu, com sangue até os cotovelos de outro ser humano. Às vezes me olhava no espelho e os 40 e poucos anos já deixavam suas marcas. Cabelos quase grisalhos, uma dispneia com pigarro constante e uma vida que segue para seus finalmentes.

Volto à sala de emergência. A Fernanda, minha colega médica, já havia adiantado a conduta com os residentes da noite. Essa aí tem minha admiração, mãe solteira de 3 filhas. O ex-marido era nosso colega de plantão. Foi pego pela chefia trepando com duas enfermeiras ao mesmo tempo durante o plantão. E foi assim que ele virou “ex” e perdeu o emprego ao mesmo tempo, fato que eu achava impossível para alguém ser demitido do serviço público.

“Porra, Chico, não tem um plantão calmo com você.”

“Foda, Fê, mas é bom que passa rápido.”

Fernanda estava comigo nessa tinha uns 5 anos, sempre com sua pochete com canetas multicolors, um bisturi e um analgésico. Cabelo preso a todo momento, provavelmente por experiências traumáticas envolvendo secreções humanas.

Já pensei em largar isso aqui algumas vezes. Mas, vicia. Você se torna essa porra e me interessa o fato de não morrer de fome. Não sei o que seria de mim sem a medicina. O que falaria, o que leria, o que assistiria. Um tempo passou e encontro o Dr. Mourão na copa próxima do centro cirúrgico, talvez o único lugar que se consegue café na madrugada. Provavelmente por conta dos anestesistas que, entre um paciente e outro, fazem uma folga para passar um café.

“E aí, como foi?”, perguntei pensando em um filho que iria ter que crescer sem pai.

“A cirurgia foi um sucesso!”

Não terminei nem de respirar aliviado e ele completa. “Pena que morreu, mas a cirurgia foi brilhante. Minhas mãos são de ouro.”

Terminou a frase beijando seus dedos sujos com farelo de polvilho e com um sorriso debochado de quem não está nem aí para aquela vida interrompida subitamente.

A vontade era

de esmurrar aquele otário, mas precisava desse emprego.

Sentado em um sofá, esperando a cafeína fazer efeito, uma conversa prende minha atenção periférica.

“Mourão na sala 01, já sabe no que deu, né”

“Não tem um que sobrevive. Esses dias ele complicou uma apendicite. Pelo menos acaba mais cedo.”

Claramente identificáveis pelas toucas cirúrgicas personalizadas do Batman e o relógio digital com uma notificação do Candy Crush, só podiam ser anestesistas.

Voltei do intervalo com meus leitos vagos ocupados. Familiares chorando. Equipe perdida.

E o olhar aliviado da Fernanda ao me ver já anunciava que lá vinha rolo.

“Chico, deu merda. Acidente feio na marginal, uma van com 15 adolescentes indo para uma festa bateu em um poste. Os transeuntes foram trazendo todos ao mesmo tempo.”

Abri um sorriso atrás da máscara. Amo essa cena. Caos. Tomo uns 4 segundos para admirar esse momento com uma trilha sonora mental de The Smiths e dei meu último gole no café.

“Atenção! Todo mundo que consegue andar. Para fora da sala vermelha agora!”

Afinal, se conseguirem andar e me entenderam, não estavam tão graves assim.

Foram saindo aos poucos aqueles com escoriações leves. Sobraram 4 pacientes.

Um deles, claramente mais grave. Traumatismo craniano com olhos de guaxinim, provável fratura de base de crânio. Era uma menina jovem, devia ter uns 14 anos no máximo.

“Os familiares não chegaram ainda”, disse Fernanda, claramente tensa com o quadro.

Suas pupilas já estavam sem reação, sem reflexos. Depois de intubada, a tomografia mostrou a catástrofe. Edema cerebral importantíssimo, com focos de sangramentos extensos, já apresentando sinais de herniação cerebral.

Antes do neurocirurgião chegar, até um graduando já saberia sua conduta.

“Conservador, né, Francisco? Já não tem cérebro viável aqui.” Apontando para a tomografia e sem ao menos examinar a paciente, virou, anotou no prontuário e voltou ao Monte Olimpo com seus AirPods nas orelhas, ouvindo algum podcast do mercado financeiro.

“Porra, o cara não quis nem saber o nome da paciente.”

“Pelo menos ele desceu.”, responde Fernanda, sempre vendo o lado positivo das coisas. A vida é triste na maior parte do tempo e coach nenhum me rouba isso.

Essa paciente evoluiu para morte encefálica nas horas seguintes. É isso, não tem milagre.

“Familiares chegaram, Dr.”, palavras citadas em tom baixo perto do ouvido por alguém que sabia que não ia ser uma notícia fácil.

“Fê, assume os outros leitos que eu vou resolver isso logo.”

“Pode deixar, Chico.”

Independente de quantas vezes você passe por isso, dar uma notícia assim nunca é fácil. Até você falar aquelas palavras, a filha deles vai estar viva e do jeito que eles viram pela última vez. Depois, a realidade deles muda. Você mata a filha deles. Você entrega a realidade. Eles vão lembrar para sempre desse momento. Apesar disso, sempre foi um dos momentos que mais gostei de presenciar. Tem um lado esquisito nisso, mas já fiz tantas vezes isso que aprendi a gostar que até poderia escrever um passo a passo. A primeira coisa que você tem que evitar é usar os verbos no tempo passado, se não corre o risco de você estragar tudo nos primeiros segundos. A outra técnica é simular um olho no olho focando entre as sobrancelhas; vai passar mais humanidade. E, por fim, exatamente antes do ponto final, dizer que foi tentando de tudo; isso tira um peso dos familiares e então você entrega o desfecho.

Foi devastador. Difícil pôr em palavras esse tipo de sofrimento. O olhar que aos poucos vai assimilando a notícia, esperando por uma vírgula de esperança.

Pessoas morrem. Eu morri um pouco ali, como em tantas outras vezes, mas tinha que continuar vivendo. O plantão dependia de mim, não podia me abalar por muito tempo. Quase uma amnésia forçada, eu tinha que voltar

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