Chico
8 min readJan 20, 2021

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas. No dia que a universidade me deu um diploma e uma ciência que estava longe de carregar no cérebro.” – Machado de Assis

Era noite na cidade de São Paulo e enquanto ela dormia, tentávamos aqui realizar pequenos milagres. Sou apenas mais um médico. Especialista naquilo que a maioria não quer ser. Especialista em emergência. Viciado em adrenalina, sangue e dor. Quem lê assim pode pensar que sou algum sociopata de jaleco branco. Não costumo usar jaleco branco.

Já me encontrava desde o nascer do sol nesse nosocômio. Percorrendo diagnósticos improváveis e atendendo pacientes de diversas gravidades. O SUS é um privilégio isso é um fato. Infelizmente, em boa parte do tempo, o SUS é usado como um laboratório. Terapia novas são testadas aqui, acadêmicos de medicina sedentos por procedimentos tentando aprender medicina em corpos ainda quentes; jovens médicos tentando ganhar experiência as custas de erros muitas vezes mascarados pela própria ignorância e professores buscando dados para engordar seu lattes.

Todo médico tem uma certa loucura dentro de si. Seja da forma que lida com a morte ou pela forma que trata as dores alheias. Já olharam para um paciente com dor lancinante enquanto a morfina é administrada? E então, a dor que era excruciante passa a ser suportável.

Por causa da morfina, meu casamento acabou, ela me deixou no sábado, só descobri na quarta quando voltei do hospital para casa. A morfina me ajudou a entender melhor o ser humano, me ajudou a passar por momentos difíceis, mas me afundou nas sombras também. Encontrar Jesus foi o que me salvou. Toda quarta tomamos cerveja depois do plantão para comemorar meu divórcio. Jesus se tornou meu amigo e um ótimo psiquiatra, especialista em abstinência de opioides. Apesar do nome, Jesus não frequenta a igreja. Foi abusado por um padre escroto quando era pequeno. Duas tentativas de suicídio, era só ódio por dentro, até resolver estudar medicina e fazer psiquiatria para ajudar vítimas de estupro e dependência química.

A emergência me dá brio, pessoas nos piores dias de suas vidas. Do recém nascido ao centenário implorando por um pouco de compaixão e não um tubo na garganta. Dentro de uma sala vermelha se perde mais que ganha. E aceitar isso é doloroso mas é preciso. Afinal, não sou cirurgião.

Meu nome é Francisco Ferro. Chico para os nobres.

E essa é uma história de como eu morri mesmo sem querer morrer.

Janeiro sempre é foda. Foda no sentido ruim.

Calor, pessoal de férias e você trabalhando para pagar o cartão estourado.

O mundo estava mais estranho que o normal. Há 1 ano, um vírus mudava nossos planos, mas depois de 365 dias, nada mais parece importar. Nem mesmo a vida. Aglomerações em larga escala, falsas promessas e tratamentos sem eficácia. O caos se instalou e o que era de se crucificar se tornou banal.

Trabalho em um hospital universitário na capital paulista. Referência de trauma e todas outras complexidades que ninguém consegue resolver.

E aqui estou, plantão noturno, sábado a noite.

Alguns me conhecem como Dr. Biscoito, afinal não é bolacha né, uma das poucas coisas do Rio de Janeiro ainda em mim. Intimidade é foda, mas também né, dez anos trabalhando no mesmo setor.

“Dr. Biscoito, avaliação na vermelha.” Disse a enfermeira, palavras quase mágicas para minha frequência cardíaca subir.

“Não esquece que seu time perdeu e você ta me devendo uma pizza.” Sempre solto um piada quando to nervoso. Era minha primeira ficha vermelha da noite, e todo mundo espera alguma coisa de um sábado a noite. Clichê sem graça, mas essas são minhas memórias póstumas então me da desconto.

Feminino, 22 anos, tentativa de suicídio, tomou o frasco de Rivotril da mãe há 20 minutos. O olhar do suicida é algo danoso. Você tem receio de olhar nos olhos deles. Desistir de viver não é um decisão fácil, mas é compreensível visto o mundo atual.

Um hospital universitário no Brasil, quer dizer que os residentes tocam o serviço, uma mão de obra barata em troca das maior pérola da medicina: o conhecimento. “Que lindo Chico” dizem vozes na minha cabeça.

Seria se a maior parte disso não fosse mentira, porque na maior parte das vezes os residente é explorado em troca de um salário merda e aprende a ter maturidade na merda do dia a dia e na base do “tomara que não de merda”. A reflexão é rápida, quem de nós gostaríamos que um Residente do 1˚ ano tirasse um apêndice. Enfim, a educação médica no Brasil precisa ser revista, principalmente a realizada nos hospitais universitários que como se os pacientes fossem porquinhos de luxo.

“Olá meu nome é Dr. Henrique, tudo bem?” disse o residente da Clinica médica.

Porra Henrique, obvio que ela não ta bem, pensei comigo mesmo e segui tentando buscar mais informações enquanto a dose do remédio não fazia efeito.

No canto, sozinha, encontro sua mãe aos prantos na sala de espera.

“Olá sou Dr. Francisco, sou o responsável pela sala vermelha.”

Tentei escolher com cautela minhas palavras. Escutei mais que falei. Terminando minhas perguntas, principalmente para estimar a dose ingerida e se por acaso havia a possibilidade de outra medicação associada.

Já me despedindo, ela faz sua única pergunta, com angustia em cada silaba.

“Dr. Francisco, ela vai ficar bem?” Se ajoelhando após o ponto de interrogação.

“Vou fazer de tudo por ela.” Um resposta genérica, longe de ser a melhor, mas foi honesta.

Enquanto me encaminhava à sala, o barulho das sirenes que pareciam distantes, foram se aproximando. Obvio que ia dar merda.

Paciente 18 anos, trazido pela policia, ferimento por arma de fogo no peito.

“Bandido tem que morrer!”, exclamava o policial com a pistola na mão destravada.

“Dr., esse ai é bandido. Tentou assaltar o mercado da principal. Teve o culhão de atirar na gente porra…e acertou a perna do meu parceiro.” Apontava para dentro do carro, seu parceiro com um tiro de raspão na perna.

O jovem, preto, ainda com sinais de vida disse:

“Dr. me salva. Só penso no Bruno. Bruno é meu filho.”

Palavras breves, até seu coração parar de bater.

“Enfermeira, kit de toracotomia agora e aciona a equipe cirúrgica!”

Então, dei duas respiradas profundas e na tentativa de ver algum sinal do sangramento, abri o tórax do paciente. Percebi uma lesão cardíaca pelo projétil. Bastou por meu dedo no buraco e com algumas massagens para o coração voltar a bater.

A equipe da cirurgia chega.

Não gosto de apresentar personagens, mas tem um filho da puta que vocês têm que conhecer.

Dr. Mourão, cirurgião geral, 50 anos de serviço publico. Ainda prescreve dolantina para dor leve.

“Mas que caralho! Por que você abriu essa porra? ”, disse meu simpático amigo.

“Já não falei que bisturi não é coisa de clinico!”, disse mais uma vez meu simpático amigo.

“Ô seu mamute, me faz o favor de levar esse paciente pro bloco cirúrgico, e já te disse que não sou clínico, sou emergencista cacete.”, respondi simpaticamente.

Passada a troca de palavras amistosas, o paciente entra em cirurgia.

E essa foi a primeira hora do ultimo plantão de sábado a noite da minha vida. Calma que essa historia é mais longa, eu so tava mudando para domingo.

Nunca fiz questão de ser médico. Minha mãe queria que eu fosse engenheiro. Mas, as coisas foram acontecendo e aqui estou eu, com sangue até os cotovelos de um outro ser humano. Vida que segue.

Volto à sala de emergencia, a Fernanda, minha colega médica já havia adiantado a conduta com os residentes da noite. Mulherona da porra, mãe solteira de 3 filhas. O ex marido dela, era nosso colega de plantão. Foi pego pela chefia trepando com duas enfermeiras ao mesmo tempo durante o plantão. E foi assim que ele virou “Ex”e perdeu o emprego ao mesmo tempo.

“Porra chico, não tem um plantão calmo com você.”

“Foda Fê, mas é bom que passa rápido.”

Já pensei em largar isso aqui algumas vezes. Mas, vicia. Você se torna essa porra e me interessa o fato de não morrer de fome.

Não sei o que seria de mim sem a medicina. O que falaria, o que leria, o que assistiria. Um tempo passou e encontro Dr. Mourão, o mamute, no café.

“E ai, mamute, como foi? ” ; perguntei pensando em um filho que iria ter que crescer sem pai.

“A cirurgia foi um sucesso! ”

Não terminei nem de respirar aliviado e ele completa.

“Pena que morreu, mas a cirurgia foi brilhante. Minhas mãos são de ouro. ”

Terminou a frase com um sorriso debochado, de quem não esta nem ai para aquela vida interrompida subitamente.

A vontade era de esmurrar aquele otário, mas preciso desse emprego.

Volto do intervalo e parece que as portas do inferno foram abertas.

Meus leitos vagos foram ocupados. Familiares chorando. Equipe perdida.

E o olhar aliviado da Fernanda ao me ver, ja anunciava que la vinha rolo.

“Chico, deu merda. Acidente feio na marginal, uma van com 15 adolescentes indo para uma festa bateu em um poste. Os transeuntes foram trazendo todos ao mesmo tempo.”

Abro um sorriso atrás da mascara. Amo essa cena. Caos. Tomo uns 4 segundos para admirar esse momento e dar meu ultimo gole no café.

“Atenção! Todo mundo que consegue andar. Para fora da sala vermelha agora!”

Foram saindo aos poucos aqueles com escoriações leves. Sobraram 4 pacientes.

Um deles, claramente mais grave. Traumatismo craniano grave, com olhos de Guaxinim, provável fratura de base de crânio. Era uma menina jovem, devia ter uns 14 anos no máximo.

“O familiares dela não chegaram ainda”, disse Fernanda, claramente tensa com o quadro.

Suas pupilas ja estavam sem reação, sem reflexos. Depois de intubada, a tomografia mostrou a catástrofe. Edema cerebral importantíssimo, com focos de sangramentos extenso, ja apresentando sinais de herniação cerebral.

Antes do neurocirurgião chegar, ja sabia a conduta dele.

“Conservador, né Francisco. Já não tem cérebro viável aqui.”

Virou, anotou no prontuário e voltou ao monte Olimpo.

“Porra, o cara não quis nem saber o nome da paciente”, reclamei.

“Pelo menos ele desceu para ver a paciente né”, responde Fernanda como quem claramente frequenta as aulas de mentoria positiva. A vida é triste na maior do tempo e coach nenhum me rouba isso…

Essa paciente provavelmente evoluirá para morte encefálica nas próximas hora. É isso, não tem milagre.

“Familiares chegaram Dr..”, palavras citadas em tom baixo perto do ouvido por alguém que sabia que não ia ser uma noticia fácil.

“Fê, assume os outros leitos que eu vou resolver isso logo.”

“Pode deixar Chico”, responde ela, sabendo que minha missão iria deixar marcas irreversíveis em mim.

Independente do quanto você esta preparado, dar um noticia assim nunca é fácil. Até você falar aquelas palavras, a filha deles vai estar viva e do jeito que eles viram pela ultima vez. Depois, a realidade deles muda. Você mata a filha deles. Você entrega a realidade.

Eles vão lembrar para sempre desse momento.

Foi devastador. Difícil por em palavras esse tipo de sofrimento. O olhar que aos poucos vai assimilando a noticia, esperando por uma virgula de esperança.

Pessoas morrem. Eu morri um pouco ali mas tinha que continuar vivendo. O plantão dependia de mim, não podia me abalar por muito tempo. Quase uma amnésia forçada, eu tinha que voltar.